É meia noite no fim da página




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O dia não lembro, era uma sexta feira qualquer. Tinhamos chegado de viagem no dia anterior e as contas todas atrasadas precisavam ser pagas urgentemente.
Todo encanto das horas fora de casa apaga quando entramos em contato com e realidade.
Depois de um ano medonho, alguns dias na estrada foram refrescantes. Eu fechava os olhos, deixava o vento acariciar meu rosto e pensava: Nada como uma viagem para mostrar o prazer de estar vivo.
Tudo vinha se arrastando um pouco, a doença da minha mãe tomou meu tempo inteiro , sua morte fez com que me deparasse com velhos fantasmas. O que estava em volta parecia não ter mais importância. Eu estava um pouco adormecida até que saimos para quinze dias de estrada.
Rever paisagens, visitar novos lugares, conhecer gente. Essa vida andarilha faz vibrar meu sangue.
Como toda viagem tivemos dias perfeitos e dias turbulentos, mas sempre diferentes. Um dia tudo dá certo, em outros nada fica no lugar. Em  um desses o GPS nos levou a uma bela trilha nas montanhas, mas com terra molhada e o sol se pondo a coisa começa a ficar tenebrosa, só depois que tudo dá certo é que isso resulta em boas risadas e muita história para contar.
 Viajar é uma delicia, assim como voltar para casa também. A estrada da volta é mais cansativa mesmo que digam que ninguém se perde no caminho da volta.
Casa fechada tem cheiros guardados, parece dormir enquanto o dono não está. Abrir janelas, deixar o sol entrar, parece que os móveis e paredes também sentem falta da rotina das pessoas.
O cansaço e as dores no corpo gritam para você que seu limite para vida agitada está se aproximando.
Chegamos no fim da tarde, almoço, banho e o cansaço me fazem dormir  antes do meu horário só acordando por volta da meia noite.  Olho para o lado, a cama vazia, e ele ainda no computador.  Como num sonho ou pesadelo, sinto que algo está errado. Sabe quando o coração ou um anjo te sopra no ouvido? Mas penso como Scarlet O'hara e digo : Vou deixar para pensar nisso amanhã.
E assim, um dia depois, estamos naquela sexta feira, o dia que não devia ter começado, ou será que não devia ter terminado? Parecia um dia como outro qualquer, nada demais, até que algo explode e sua vida pode virar do avesso.
A noite prometia, conversa com os amigos, matando saudades, algumas pessoas queridas, outras nem tanto. Tudo parecia igual mas eis que surge um movimento novo, a pessoa deixa revelar o que pretensamente queria esconder. Cai a máscara, a brincadeira se transforma em dor.
E num instante o que era desconfiança boba torna-se certeza absoluta, aquele gosto amargo do desencanto deixa o meu corpo dormente e se o relógio tivesse tocado a meia noite ele não bateria a decima segunda badalada, porque naquele momento tudo foi silêncio. O mundo parou, foi como se a morte chegasse embora o coração teimosamente ainda insistisse em bater. Meu mundo caiu, não tinha mais chão. É meia noite no fim da página. Seria assim que tudo terminara?



Amor, então
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.


Paulo Leminski


Este post é parte integrante do projeto “Caderno de Notas – Segunda Edição”, do qual participam as autoras Ana Claudia Marques, Ingrid Caldas, Luciana Nepomuceno, Lunna Guedes, Maria Cininha, Tatiana Kielberman, Thelma Ramalho e a convidada Mariana Gouveia.

Comentários

  1. Você literalmente nos pegou pela mão e nos conduziu aos dias de sol quente na estrada e, a consequente volta pra casa num dia em que o tempo não quis ser mentor, quis ser apenas uma figura comum na platéia...
    Excelente texto minha cara.
    bacio

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  2. A vida é feita de círculos e ciclos. Começos, meios, fins.
    Tudo na verdade, é um eterno recomeço, mesmo quando termina.

    texto belíssimo!

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  3. a vida segue, e nos tropeços do amar vamos crescendo..
    lindo escrito.
    beijos.

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  4. O amor se transforma ou em raiva ou em rima... é bem assim...

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  5. Lindo e triste... acima de tudo, bastante real!

    Beijos, querida!

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Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

"Cecilia Meireles"

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